“Na língua zulu [uma das línguas da África do Sul], quando uma pessoa passa pela outra, uma diz: ‘Eu estou te vendo’. A outra responde: ‘Sim, eu estou cá’. Quando eu digo ‘oi’ para alguém ou quando eu olho essa pessoa e essa pessoa corresponde me olhando, eu estou reconhecendo a sua presença, reconhecendo a sua humanidade. Isso que significa essa saudação”.
A professora emérita da Universidade Federalista de São Carlos (UFSCar), vinculada ao Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas do Núcleo de Instrução e Ciências, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva usa a saudação para explicar a prestígio da instrução étnico-racial e da Lei 10.639/2003, que estabelece que os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira sejam ministrados no contexto de todo o currículo escolar, ou seja, em todas as etapas de ensino, da instrução infantil ao ensino médio.
Brasília (DF) 13/01/2024 – Uma das lideranças da luta antirracista na Instrução a professora, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva Foto: Ateneu de Ciências da Bahia/Divulgação – Ateneu de Ciências da Bahia/Divulgação
Silva foi, em 2004, a relatora, no Juízo Pátrio de Instrução (CNE), do parecer que definiu as diretrizes curriculares para a implementação da lei em todo o país, em escolas públicas e particulares. Para a professora, a prestígio da instrução étnico-racial nas escolas é que as diferentes culturas sejam valorizadas e respeitadas. “Eu costumo proferir que instrução étnico-racial se dá no convívio. Por exemplo, quando eu passo por uma pessoa. Se eu passo e viro o rosto, não estou reconhecendo a sua presença a sua humanidade”, diz, explicando a saudação zulu.
Segundo ela, esse reconhecimento só vem com o conhecimento: “Valorizar e respeitar, exige que se conheça e que seja se tenha reverência pelas distintas maneiras de ser, porque isso vai permitir que se intensifique um diálogo para que se decida junto para que país estamos trabalhando, para que país brasileira estamos contribuindo com nosso estudo, com nossa participação na sociedade e com o nosso convívio quotidiano”.
A luta por conhecimento da cultura afro-brasileira e africana, que levou, entre outras mudanças, a aprovação da Lei 10.639/2003, é uma luta de muitos anos, do movimento preto, dos movimentos sociais e de muitas pessoas. “O que aconteceu durante muitos anos é que se reconhecia porquê a história mais valiosa do povo brasílico a que tivesse sido construída pelos europeus. Portanto, essa que foi ensinada para nós nas escolas e o que sabíamos sobre histórias dos nossos povos negros, indígenas, vinham por meio das famílias das associações”, explica Silva.
A lei, que mudou a Lei de Diretrizes e Bases da Instrução Pátrio (LDB), a principal lei da instrução no Brasil, veio porquê objetivo de mudar esse cenário, de incluir nas salas de lição, os conhecimentos, a cultura e a história de grande segmento da população brasileira.
Ainda hoje, no entanto, 21 anos posteriormente a aprovação, a lei ainda não é cumprida. Uma pesquisa divulgada no ano pretérito mostrou que 71% das secretarias municipais de Instrução não têm ações consistentes para atender a legislação. Outro estudo divulgado leste ano mostra que muro de 90% das turmas de instrução de creche e pré-escola ignoram temas raciais. Silva é taxativa: “Eu começaria dizendo que não é que conseguem. É que não querem implementar”.
Silva conta que no momento que o CNE se manifestou, ele considerou as diferentes experiências que já existiam no país, experiências que vinham sendo construídas pelos movimentos sociais e também por professores. Há, portanto, indicações de caminhos. O próprio parecer do CNE estabelece que seja feito um mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas.
Combate ao racismo
Segundo a coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, Edneia Gonçalves, o grande empecilho para a emprego da lei é o próprio racismo. “Tem uma questão de fundo. Essa lei é uma ação afirmativa e é uma ação que reafirma o racismo no Brasil. Portanto, a dificuldade dessa emprego tem a ver justamente com o racismo, que ensina que isso não é importante”, diz.
A implementação exige um esforço para a formação de professores, produção de materiais didáticos e uma reorganização da própria escola. Mas, mais uma mudança é necessária, segundo Gonçalves, assumir que o racismo existe.
“A mudança que acontece antes de chegar à sala de lição é uma mudança que a gente considera porquê muito mais profunda que é efeito das manifestações institucionais do Brasil, considerando o racismo institucional no envolvente escolar, na política escolar, no sistema educacional brasílico. Tem muitas coisas que precisamos discutir, mas para chegar na sala de lição, primeiro, tem que passar por essa discussão, enfrentar o mito da democracia racial, que ainda é muito possante nas escolas”, defende.
Gonçalves ressalta ainda que não se trata de uma simples lei, mas de uma lei que modificou a LDB, incluindo na principal lei da instrução o ensino étnico-racial. Além da lei, estão as diretrizes definidas pelo CNE. Nelas, estão mais detalhes de porquê essa lei deve ser implementada e que tipo de atividades e conteúdos devem ser trabalhados nas salas de lição. “Se a legislação não foi aplicada até agora, imagina as diretrizes. É preciso estudar diretrizes e pensar aplicações para todas as áreas do conhecimento e possiblidades de fala e diálogo com a comunidade escolar. É um duelo muito grande”, diz.
Postura sátira
Segundo a professora, escritora e doutoranda da Faculdade de Instrução da Universidade de São Paulo (USP), Sheila Perina de Souza, o país avançou em um quesito fundamental para a emprego da lei, que é a produção de materiais didáticos. “Também por conta das políticas afirmativas, cada vez mais a gente tem pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento produzindo materiais, professores que também se colocam nesse lugar de produzir material para tratar da história e da cultura negra. Essa barreira dos materiais didáticos temos avançado bastante, ainda é um tanto que falta, mas é um tanto que tem evoluído”, diz.
Professora e escritora Sheila Perina de Souza, estuda no doutorado da faculdade de instrução da Universidade de São Paulo (USP) Foto: USP/Divulgação
Mesmo assim, é necessário um olhar crítico até mesmo dos próprios professores. De harmonia com Souza, o estudo do Continente Africano ainda permanece porquê um “puxadinho” nos livros didáticos, um teor que acaba sendo deixado para o final e que às vezes não é nem mesmo concluído.
“É fundamental que a gente também porquê professoras e professores revisitemos os livros didáticos com uma postura sátira, com postura de pesquisador, questionando se as informações que o livro traz são informações que estão de harmonia com a instrução antirracista que estamos construindo, porque embora tenhamos avançado ainda há muito trabalho a fazer”, diz.
Outro grande duelo, segundo Souza é erigir um currículo que se proponha a discutir a presença negra não somente nas ciências humanas, mas que seja transversal, abrangendo todas as disciplinas do currículo.
Por isso, para ela, o foco deve ser no Projeto Político Pedagógico (PPP), que é um documento elaborado anualmente que reúne os objetivos, metas e diretrizes de cada escola. “É um momento no qual se faz um pacto da escola com uma instrução antirracista, uma instrução para as relações étnico-raciais. É de fundamental prestígio que esse compromisso também apareça no PPP, que é um documento que é construído pelos professores, pelas famílias, um documento da comunidade escolar”, explica.
Implementar a lei é, segundo Souza, fundamental: “É uma lei mais que importante, acho que é fundamental. Quando a gente pensa em Brasil e pensa na prestígio dos negros na construção desse país, pensar em uma instrução que se pretende democrática e essa instrução não contempla o ensino da cultura e da história dos povos que a formaram, não se pode proferir que de trajo se trata de uma instrução democrática. Ela nega o recta a todos os brasileiros, a todas as etnias a terem entrada a sua história”.